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Arca de Darwin

"Look deep into nature, and then you will understand everything better", Albert Einstein

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Arca de Darwin

09
Nov13

Onde a Biodiversidade se Esconde (post convidado)

Arca de Darwin

Texto e fotos: Miguel Costa*

* (fotógrafo, estudante de Biologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa)

O local,

 Fronteira entre Portugal e Espanha, a freguesia da Ajuda, Salvador e Santo Ildfedonso foi, na margem do Guadiana, cenário de inúmeras batalhas durante séculos que tanto pretendiam devolver Olivença a Portugal como pretendiam tirá-la.

Com uma paisagem formada por suaves encostas com uma significativa cobertura de mato ribeirinho e áreas de montado, o local mais atraente e com interesse turístico é aquele vulgarmente conhecido como Ajuda.

Quando o sol se põe os barulhos nocturnos imperam, dando ao local um ambiente sinistro. A única luz é aquela que vem dos candeeiros que iluminam a Ermida de Nossa Senhora da Ajuda

Perto da cidade de Elvas, a Ajuda do Salvador é de fácil acesso, com lugar para estacionar junto à Ermida de Nossa Senhora da Ajuda, localizada na margem direita do Guadiana, na encosta sobranceira onde se encontra uma ponte destruída pela Guerra da Restauração. O rio é acompanhado por monumentos arqueológicos, moinhos e fortalezas, que demonstram uma zona já habitada e alvo de guerras há muitos séculos.

O Guadiana proporciona condições ideais para a variedade de formas de paisagem e biodiversidade. Assim, temos nesta região zonas húmidas – os pegos dos cursos de água na estação seca e vários charcos – e também podemos usufruir dos montados povoados pela azinheira e sobreiro, os matos e os campos de cultivo.Esta variedade paisagística contribui para uma flora muito rica - desde soberbos eucaliptos a raras e delicadas flores – e uma fauna conhecida pela enorme variedade de aves estepárias.Esta junção curiosa que se cria em torno do rio Guadiana, que delimita a freguesia, cria um ambiente mágico que devia ser mais reconhecido.a flora,         O vento seco assobia entre as azinheiras (de nome cientifico Quercus ilex). São elas que, entre as árvores, imperam, não fosse esta uma freguesia do Alentejo. No chão, as bolotas descansam à sombra daquela que antes as pendurou. Esta árvore de folha persistente não apresenta preferência por nenhum solo em particular, pelo que podemos vê-las tanto nas vastas planícies do Alentejo como nas margens do Guadiana.Em menos quantidade está o choupo branco (Populus alba), contudo, a dimensão de uma árvore adulta desta espécie chega até aos 30 metros, o que faz com que esta árvore de folha caduca não passe desapercebida, menos ainda na primavera, quando tem uma bela floração com amentilhos pendentes. E, também mais disperso, o eucalipto, relativamente recente em Portugal.

Brotando do sólido tronco do eucalipto, uma ainda verde ramificação saúda o sol

Ainda que sejam as árvores aquelas que nos cobrem a vista, tropeçamos constantemente na vegetação ribeirinha e nos enovelados arbustos.  Vemos inúmeros tamujos (Securinega tinctoria), que cobrem a zona mais próxima da margem. O tamujo tem muitos ramos finos, rígidos e espigados, o que dificulta a passagem de quem se atreve a avançar para locais mais afastados da ermida e das pontes.

De ramos finos e espigados o tamujo emerge numa quantidade bastante elevada nas proximidades do rio, sendo dos arbustos que mais se destaca

 Em determinadas épocas do ano, o roxo salpica a paisagem – é o rosmaninho (Lavandula stoechas), linda planta que servia para cobrir o chão durante as procissões. Aqui, faz parte do equilíbrio, tendo uma grande influência nas borboletas diurnas, já que fornece alimento a algumas espécies destes insectos voadores.

Uma borboleta pousa no rosmaninho, banqueteando-se com o pólen

No verão, o rosmaninho é acompanhado de o pampilho, como a margarida (Chrysanthemum leucanthemum) e o malmequer (Chrysanthemum pinnatifidum), ora amarelos ora brancos, e que servem de plataforma a muitos insectos.

Não muito longe, o pampilho serve de plataforma a dois insectos, que lutam pela posse da flor

Também o cardo (C. cardunculos) é necessário para os lepidópteros, visto que há aqui espécimes que colocam os seus ovos nesta planta.

A mesma planta é utilizada por estas distintas espécies de borboletas diurnas

         Destaca-se ainda o Narcissus humilis (narciso), que, segundo o ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas) é uma espécie de conservação prioritária: “Em Portugal está bastante ameaçada e no limite da sua área de distribuição”.Poderia enumerar muitas outras plantas que fazem parte destas galerias e matos ribeirinhos meridionais. Na primavera as cores revelam a biodiversidade enorme da flora, fazendo-nos esquecer que vivemos num clima caracterizado por verões e primaveras excessivamente quentes e secos.a fauna,Quase tocando na copa das árvores, um imponente ser branco e preto voa em círculos vertiginosos sobre o rio. Trata-se de uma cegonha-branca.

Roçando com as asas no rio, esta cegonha-branca voa velozmente a escassos metros da água

Se caminharmos para nordeste da ponte, onde o rio vem de Badajoz, já afastado do turismo e da movimentação, as margens do Guadiana tornam-se subitamente num local muito distinto, mais selvagem, de difícil acesso e vegetação densa.  Desvanecendo-se o barulho das vozes e dos carros a passar na recente ponte, a única presença é o distante fluxo do rio, sendo uma ou outra vez interrompido pelo barulho de um peixe que resolve irromper a água saltando, ou por uma gralha-de-nuca-cinzenta (Corvus monedula)  que atravessa o caminho.A gralha-de-nuca-cinzenta é uma ave de pequeno porte que é vista com facilidade, inclusive pousada nas árvores mais altas, em grupos grandes. Das que vão ser enumeradas é a ave mais fácil de observar, já que até mesmo as ruínas da velha ponte são frequentadas pelos seus bandos. E, mesmo para os mais distraídos, não passa desapercebida, já que as suas vocalizações (como um grasnar metálico) são inconfundíveis e audíveis a distâncias consideráveis.

As gralhas-de-nuca-cinzenta, que se juntam em grandes bandos, escolheram esta árvore para posar. Enquanto umas limitam-se a limpar as asas com o bico, outras observam atentas quem aparece nas proximidades

 Em algumas árvores secas encontram-se ninhos abandonados de pardal-espanhol (Passer hispaniolensis), o qual, embora numa quantidade pouco significativa, também marcam presença em vários pontos desta zona da freguesia. Na vegetação firme, onde num momento estamos em terra assente, no outro já nos vemos dentro rio, habitam os patos-trombeteiros (Anas clypeata), que nadam lentamente no rio sereno. São fáceis de encontrar e são mais abundantes durante o Inverno.Avistando duas figuras pousadas em grandes pedras que se salientam no meio do rio, foquei com a lente da máquina fotográfica para ver melhor do que se tratava. Vi dois milhafres-pretos (Milvus migrans). Estes predadores adaptaram-se bem à presença humana, e até podem ser vistas em cidades, onde caçam pombos e ratos. Não se encontram em risco e são das aves de rapina mais comuns.Mais isoladas estão as cegonhas-brancas (Ciconia ciconia). Observei um casal, com um ninho bastante grande, composto por ramos entrelaçados que é utilizado em anos sucessivos, pelo menos desde 2007. Na construção do ninho, onde são colocados 3 a 7 ovos, cooperam ambos os membros do casal. Estamos a assistir a uma fase de recuperação destas aves, dado que em meados dos anos 80 a espécie passou por um período em que a população diminuiu gravemente. Não é uma ave vulgar nesta zona, mas, ainda dentro da freguesia, é vista com mais frequência na Torre de Bolsa.Embora sejam as aves que se destacam, não é a única fauna local. A Ajuda, Salvador e Santo Ildefonso é uma zona de montado, e, assim sendo, é aproveitada para pastagem. Muitas vezes vemos vacas (Bos taurus) espalhadas por toda a margem, e a ponte antiga não é excepção. Por sua vez, sempre atentas, as garças-boieira (Bulbulcus ibis) nunca se afastam do gado bovino, estabelecendo uma relação de simbiose: quando a manada vai saciar a sede, a garça-boieira faz a limpeza ao grande mamífero, enquanto a ave usufrui de um bom almoço à base de insectos e parasitas.

A manada de vacas aproxima-se do rio calmo. Uma cria caminha vagarosamente junto às pernas da progenitora

 Ora correndo pelos campos de cultivo nas imediações do rio, ora passando velozmente por baixo dos arcos da ponte da Ajuda, os coelhos-bravos e as lebres desaparecem diante de nós num abrir e fechar de olhos. Por sua vez o cágado-de-carapaça-estriada (Emys orbicularis) apanha um banho de sol num tronco seco que interrompe o rio. Depois, lentamente, desce para as águas pouco profundas, onde algumas carcaças de lagostim servem de alimento a um grupo de vespas famintas.

Lagostim corajoso, luta contra a objectiva da máquina, levantando-se nas patas traseiras e aprumando as pinças. Acaba por, a pouco e pouco, escapar-se para a segurança das águas pouco profundas do Guadiana

 É difícil encontrar um eucalipto, um choupo-branco ou uma velha azinheira que não tenha um conjunto de aves que observam este panorama ou limpam as penas com o bico. É difícil aqui estar sem ouvir um barulho miudinho e ver a ponta da cauda de uma osga a desvanecer-se numa fenda rochosa.  E é quase impossível pisar a terra húmida e lamacenta que se afunda no inicio do leito sem ter incontáveis libelinhas a rodear os nossos pés. Nota-se que há um equilíbrio frágil no ecossistema, o que lhe dá uma certa elegância, visto haver tanta interacção entre os vários elementos da fauna e da flora circundante.e a gente.“Puxa com força. Olha, ele escapa! Esses gajos têm força”, diz um pescador para o outro, que acabara de apanhar um cágado com a cana de pesca. O animal luta pela vida, de pernas para o ar, num esforço que acaba por revelar-se desnecessário, uma vez que, depois de o ter apanhado, o pescador tira-lhe o anzol e liberta-o.

Seja pai e filho, marido e mulher, ou simplesmente um grupo de amigos a passar uma boa manhã de domingo, a pesca na Ajuda é uma boa alternativa à barragem do Alqueva. Na primavera e no verão vemos uma grande incidência na pesca, já que um acordo entre Portugal e Espanha permite a pesca no Guadiana durante a época da desova.Não é só a pesca que traz as pessoas aqui. O turismo “histórico” também marca a presença. Gente vinda de Olivença e de Elvas é atraída pela curiosidade de ver o local onde os seus antepassados outrora combateram.

Moinhos que durante séculos moeram o trigo que alimentavam as gerações que nos precederam, símbolos do trabalho e da paz, ainda hoje estão presentes ao longo das margens do Guadiana, capazes de resistir anos a fio às forças das cheias. Para alguns, são memória, e nada antiga, de pescarias e caldos comidos à sua sombra

Outros apenas veem este local como um bom sítio para fazer um piquenique com a família, fugindo à banalidade da cidade. Alguns apenas querem usufruir da paisagem e do rio para a fotografia e canoagem. É também um local escolhido para convivência, no âmbito de programas como o “Encontro Transfronteiriço de voluntários” e os “Encontros da Ajuda”.Como seria de esperar, toda esta actividade, com alguns maus comportamentos ecológicos, acaba por, a pouco e pouco, degradar a zona. Placas de madeira com escamas nelas coladas pelo intenso calor do sol, garrafas de vinho e pneus abandonados são apenas alguns exemplos de vestígios da actividade pesqueira, de acampamentos na época da Páscoa e de piqueniques. É grave esta poluição constante, já que, com o aumento do leito do rio, o Guadiana acaba por acarretar  todas estas formas de conspurcação, contribuindo para problemas graves nas espécies que aqui habitam.Felizmente, algumas medidas ambientais vão sendo tomadas, como o cuidado com as espécies protegidas e a plantação de algumas árvores.

Sim, trata-se mesmo de uma jovem árvore dentro de uma jaula de arame farpado. Este ainda pequeno eucalipto foi aqui plantado e protegido para garantir a continuação da espécie

Todos estes esforços vão aumentar e rejuvenescer o local, mantendo a Ajuda um local estável neste planeta tão dinâmico.