No sábado passado visitei as cerca de 30 obras de arte - pintadas, graffitadas ou esculpidas em empenas de prédios de três andares - que decoram a Quinta do Mocho, em Sacavém, Loures. A visita decorreu no âmbito do projecto "O Bairro i o Mundo", iniciativa da Câmara Municipal de Loures e da Associação Teatro Ibisco, que quer acabar com o estigma associado a este bairro social, "mostrando o bairro ao mundo e trazendo o mundo ao bairro".
A "qualificação artística dos edifícios" é a face mais visível deste projecto, mas há outras, como a reabilitação do espaço público. Os méritos já foram reconhecidos lá fora: na semana passada "O Bairro e o Mundo" ficou entre os cinco primeiros classificados do prémio Diversity Advantage Challenge, promovido pelo Conselho da Europa.
Não ganhou, mas há outras vitórias que têm impacto significativo naquela comunidade. Uma delas é que, provavelmente dentro de duas ou três semanas, começarão a circular autocarros dentro do bairro, algo que nunca aconteceu nos 14 anos de existência da urbanização.
Outras vitórias são menos quantificáveis, mas nem por isso menos relevantes. Durante a visita os guias referiram que moradores à procura de emprego receavam mencionar a morada no currículo, optando por colocar endereços próximos, como a Bobadela. As pinturas nas paredes são mais um instrumento que visa aumentar o sentimento de pertença e o orgulho dos moradores no seu bairro.
Claro que tal não será suficiente se não se alterar a mentalidade dos que vivem fora do bairro. Mas os guias também contaram que, há poucas semanas, um pai que vive num bairro vizinho, "do outro lado da rua", e que nunca ousara entrar na Quinta do Mocho, atravessou a estrada com os dois filhos para verem as pinturas. Depois de "entrar" constatou que se trata de um bairro como tantos outros, com cafés, com creches...
O mesmo constata quem participa nas visitas organizadas pelo "O Bairro i o Mundo". Como em tantos outros bairros, ali colocam-se flores à janela, convive-se, joga-se e espreita-se a vida dos vizinhos. Sim, há muito para fazer no bairro e os 10.000 euros do prémio do Conselho da Europa teriam dado muito jeito, mas o projecto está numa fase inicial e por certo haverá muitas outras novidades.
Quanto às visitas, saiba que se repetem no último sábado de cada mês e que a participação é gratuita. E que haverá pinturas novas, tal como aconteceu nesta visita, onde vimos NADA a concluir a sua, que transmite a mensagem de que "só a entreajuda pode mudar o mundo". Para saber como se inscrever visite a página "O Bairro i o Mundo" no Facebook.
Na próxima já não serão os mesmos quatro guias. Hugo Cardoso, da Casa da Cultura de Sacavém, abandona o papel de anfitrião e deixa-o nas mãos dos três músicos, moradores do bairro: Kedy Santos, Dei Dei e Djavan.
Uma nota de destaque para os autores dos pinturas que, além de doarem o seu tempo e talento, dispuseram-se a conhecer a realidade do bairro de modo a incorporá-la nas peças de arte, incluíram crianças na realização das suas obras, realizaram workshops de pintura, e ainda "reabilitaram" as entradas de alguns prédios.
A ligação entre as diferentes pinturas e o bairro faz-se de diversas maneiras. A inclusão de "mochos" nas "molduras" é apenas uma delas.
No bairro não existirão tantas nacionalidades como as presentes no conselho de Loures - 122 -, mas serão certamente muitas, e as pinturas reflectem essas diferentes culturas, como acontece com o único mural, da autoria de António Alves, que retrata Amílcar Cabral (1924-1973) e situa-se na avenida que tem o nome deste defensor dos direitos dos povos da Guiné e de Cabo Verde.
Na mesma avenida, o nosso já conhecido Nomen evoca o sentimento de que os moradores só podem ser eles mesmos dentro do bairro.
Miguel Brum assina a peça com que mais moradores rapidamente se identificaram, "principalmente as mães que perderam filhos", partilha Kedy Santos.
A garça de Bordalo II, bisneto do famoso Bordalo, simboliza as migrações e é a única escultura. Foi construída com partes de carros e de contentores.
O Projecto Matilha trouxe o tema que já retratou em várias paredes de Lisboa: o estigma (e o abandono) que pende sobre cães ditos "perigosos".
Saiba ainda que, aqui, pode adquirir t-shirts impressas com as pinturas presentes no bairro. As imagens das restantes obras seguem num próximo post.